Por Manuel Faria e Sara Tavares
Analistas de políticas públicas no Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)
A disponibilidade, capacidade e motivação dos profissionais da saúde são determinantes da efetividade do Sistema Único de Saúde (SUS). Não à toa, as ações de planejamento, desenvolvimento e fixação dos Recursos Humanos (RH) em saúde são tarefas que compõem o rol de atribuições e responsabilidades das instituições do SUS nos três níveis de governo. No nível federal, isso implica ao Ministério da Saúde a necessidade de atuar ao longo de todo o ciclo profissional dos RH desde a formação inicial, passando pelo mercado de trabalho, até o ambiente da prática.
No recém lançado diagnóstico “Recursos Humanos, Infraestrutura e Tecnologias no SUS”, volume 2 da Coletânea Mais SUS em Evidências, avaliamos de que forma tal atuação vem se desenvolvendo, sintetizando as principais evidências sobre as políticas de RH em saúde e identificando os pontos chaves e os desafios para evolução da força de trabalho no SUS. As informações podem ser objeto das políticas públicas elaboradas pelos próximos governantes e gestores.
Notamos que atualmente as intervenções do Ministério da Saúde se dão de forma pulverizada. Na formação inicial, o governo federal atua para garantir a oferta necessária de profissionais, convergindo com as necessidades práticas do sistema de saúde público. As universidades públicas, programas de bolsa em instituições privadas (ex. ProUni), regulação e incentivos de grades curriculares de formação (ex. Promed e Pró Saúde), são algumas das ações desenvolvidas.
No mercado de trabalho, as estratégias de interiorização e fixação profissional são o foco do Ministério da Saúde. Programas como Mais Médicos e Médicos pelo Brasil miram melhorar a distribuição de médicos no território, e, de fato, alcançam resultados relevantes. No ambiente da prática, existe um vasto leque de estratégias assistenciais desenvolvidas pelos municípios no SUS e que são coordenadas pelo ministério. O Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF) é um exemplo de iniciativa que preconizava a organização multiprofissional no desenvolvimento das ações de Atenção Primária nos municípios, e que, apesar de bem avaliado, teve seu repasse financeiro descontinuado.
Todas essas ações compõem o conjunto de políticas que impactam a estruturação da força de trabalho no SUS. No entanto, com poucas exceções, é possível afirmar que elas não se desenvolveram na última década. Em contrapartida, o ambiente de formação e trabalho dos RH em saúde está em plena transformação e em compasso mais acelerado que a atuação do governo federal.
De acordo com o Censo da Educação Superior, entre 2010 e 2020, o número de cursos de saúde em instituições de ensino privadas praticamente duplicou, saindo de 1.598 para 3.058, enquanto a oferta educacional pública se manteve estática. Como consequência, a proporção de matriculados em cursos privados na área da saúde, que era de aproximadamente 54% em 2000, alcançou 85% em 2020.
Isso se dá sem que antigos desafios tenham sido superados, como o caso da educação permanente ou da organização multiprofissional nas unidades de saúde, insistentemente enfrentados por políticas com poucas evidências de efetividade. Além disso, hoje existe um conjunto de soluções inovadoras sendo desenvolvidas e aplicadas em sistemas de saúde públicos ao redor do mundo que podem ser aproveitadas e adequadas ao SUS. Como exemplo, podemos mencionar políticas de interiorização e fixação profissional aplicadas na Austrália, que estimulam identificação sociocultural, e a ampliação do escopo de práticas da enfermagem, muito desenvolvida no sistema de saúde canadense.
Todas as evidências do atual cenário que envolve os RH no SUS nos levam a enxergar a necessidade de continuar aprimorando a atuação do Ministério da Saúde sobre essa força de trabalho, e existem caminhos para superar os desafios e avançar. A Agenda Mais SUS, lançada em julho deste ano pelo IEPS, apresenta alguns deles em forma de propostas para aprimorar a ação do Ministério da Saúde sobre o ciclo dos RH no SUS. A primeira se refere à necessidade de desenvolver a inteligência no Ministério. Isso se dá tanto no âmbito da avaliação de políticas públicas, para que se possa discernir o que funciona do que é ineficaz, quanto do monitoramento dos mercados de formação e trabalho, por meio de um melhor uso das tecnologias de informações existentes e o desenvolvimento de novas. Essa será a base para qualificar o planejamento das ações.
Para balancear as necessidades de formação de RH e mão de obra qualificada em um contexto de transformação do mercado de trabalho e ensino, a Agenda propõe uma reformulação da regulação do ensino em saúde, a fim de integrar e aprimorar os mecanismos de avaliação, adequação curricular, além de introduzir sanções em prol da qualidade. O documento também propõe a criação de estratégias complementares para interiorização e fixação profissional, com base nas experiências internacionais mais recentes, e a reformulação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde.
Por fim, o fortalecimento das equipes multiprofissionais no SUS, por meio da regulação de protocolos de compartilhamento de tarefas entre diferentes profissionais, e a expansão do escopo de atuação da enfermagem, com o desenvolvimento de uma regulação e a criação de novos protocolos clínicos, são propostas como iniciativas necessárias para o alcance do fortalecimento do SUS, sobretudo, na Atenção Primária.
Seja por conta das mudanças recentes no mercado de formação, dos antigos desafios ainda não superados ou das inovações em outros países, é chegada a hora de avançar nas políticas de RH em saúde. Os desafios são complexos, mas é necessário agir agora para garantir a força de trabalho que precisamos para ampliar, quanti e qualitativamente, o SUS.
Todos os dados utilizados neste artigo foram extraídos da Agenda Mais SUS: Evidências e Caminhos para Fortalecer a Saúde Pública no Brasil, projeto assinado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e Umane, reunindo 72 especialistas da área, de várias partes do país, em mais de 500 referências que trazem dados e evidências concretas e inéditas, sob metodologia rigorosa de apuração e viabilidade técnica.
Foto: Conasems/Dia Internacional da Enfermagem/2020