FOLHA DE SP: Alta de mortes maternas é marcada por iniquidades raciais e regionais, mostra pesquisa do IEPS

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Acesso ao pré-natal adequado, que pode prevenir complicações na gestação, é maior entre as brancas em comparação às negras e indígenas

Por Cláudia Colucci

Mesmo com uma política pública voltada à saúde maternoinfantil há mais de uma década, o Brasil não conseguiu reduzir as iniquidades raciais e regionais associadas às mortes maternas, que foram agravadas na pandemia de Covid-19.

Dados preliminares mostram que em 2019 e 2021, a RMM (razão de mortalidade materna) teve aumento em todos os grupos, inclusive entre as mulheres brancas, que, historicamente, são menos afetadas em comparação às pretas, às pardas e às indígenas.

Análise da Vital Strategies, com base em sistemas de informação do Ministério da Saúde, revela que, entre 2018 e 2021, a RMM entre brancas passou de 49,9 para 118,6 mortes por 100 mil nascidos vivos.

A hipótese é que o aumento esteja relacionado ao colapso enfrentado por hospitais, ao negacionismo em relação às medidas preventivas e à resistência inicial na vacinação das grávidas.

No mesmo período, entre as mulheres pretas, a RMM passou de 104 para 190,8 mortes por 100 mil, a maior entre todos os grupos. Entre as pardas, foi de 55,5 para 96,5, e entre as indígenas, de 99 para 149.

“O que vemos na vigilância da morte materna é a crônica de uma morte anunciada. A gestante não é de alto risco, mas é muito pobre, tem pouco acesso ao pré-natal. Muitas vezes, no pré-natal, o médico prioriza o ultrassom e não pede um VDRL [exame que identifica a sífilis] ou exame de urina”, diz a médica Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies.

Complicações no final da gestação, como infecção urinária, mesmo em uma gestante de baixo risco, pioram o prognóstico. “Ela procura o hospital e não se identifica o problema, ela vai a outro e outro até complicar muito e ser hospitalizada de urgência. Se não morrer, vai chegar perto. Todos os casos contam a mesma história”, afirma.

O alto número de mortes maternas reflete desigualdades no acesso à saúde. Em 90% dos casos, são causas evitáveis. Por isso, é considerada uma das mais graves violações dos direitos humanos das mulheres.

O Brasil é signatário de um acordo internacional para reduzir as mortes de gestantes e puérperas até 2030 a um patamar de 30 mortes por 100 mil nascidos vivo, mas um relatório de 2019 do Ministério da Saúde mostra que, a depender do atual ritmo, há 95% de probabilidade de o país não conseguir atingir essa meta.

Um novo boletim do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) que analisa as principais causas do aumento da mortalidade materna e as propostas de enfrentamento aponta que as disparidades raciais ligadas às mortes já começam no pré-natal.

No primeiro ano da pandemia, por exemplo, o número de gestantes brancas que realizaram um pré-natal adequado caiu 0,54%. Entre as negras, a queda foi de 1,44%. É considerado um pré-natal inadequado quando a assistência médica começa apenas após o terceiro mês de gestação ou que foram realizadas menos de seis consultas durante toda a gravidez.

“Houve piora do indicador de morte materna para todas as mulheres, mas, para as mulheres negras, a piora foi mais intensa. Essa diferença de acesso ao pré-natal entre brancas e negras vinha se reduzindo, mas com a pandemia tudo piorou. É urgente que haja políticas de fortalecimento da atenção primária e de ações voltadas ao cuidado das mães e mulheres negras”, diz Rony Coelho, pesquisador do Ieps.

Segundo ele, as desigualdades raciais também marcam as diferentes regiões do Brasil e são anteriores à pandemia. Em 2014, por exemplo, 52,9% das gestantes pretas do Norte do país não tiveram acesso adequado ao pré-natal, contra 21,7% entre mulheres brancas do Sudeste.

Uma outra pesquisa realizada na UFBA (Universidade Federal da Bahia) mostra que a cor da pele também interfere no acompanhamento de adolescentes grávidas. Enquanto 64% das meninas brancas têm acesso adequado ao exame pré-natal, esse índice cai para 50% entre as meninas negras e para 30% entre as indígenas, segundo dados preliminares da pesquisa sobre gravidez e maternidade na adolescência.

De acordo com Agatha Eleone, analista de políticas públicas e uma das autoras do documento do Ieps, embora exista uma política pública voltada desde 2011 para apoiar e financia ações de atendimento às gestantes e bebês (Rede Cegonha), isso não foi suficiente para resolver as elevadas taxas de mortalidade materna e nem as disparidades regionais.

Ano passado, a gestão Jair Bolsonaro (PL) extinguiu a Rede Cegonha e a substituiu por uma outra rede de atenção maternoinfantil (Rami). Esta, por sua vez, já foi extinta pela gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no início deste ano e houve a retomada da Rede Cegonha.

No final de 2022, havia previsão de corte de R$ 18 milhões no orçamento de 2023 para implementação de políticas maternoinfantis. Mas, segundo o Ministério da Saúde, ainda não há uma definição de quanto será de fato o orçamento para a área neste ano.

Uma das principais complicações obstétricas que levam à morte materna é a hipertensão (pré-eclâmpsia e eclâmpsia), que aumentou a sua participação nas mortes. Em 2014, a razão foi de 25,2 por mil partos. Em 2021, subiu para 33,3 (alta de 34%).

“A melhor solução para reduzir essas mortes é um investimento na atenção primária, um acompanhamento eficiente no pré-natal”, afirma Agatha Eleone.

O cumprimento de metas de realização das seis consultas de pré-natal está atrelado à parte do financiamento da atenção primária, dentro do Programa Previne Brasil, mas 35% dos municípios brasileiros não atingiram esse objetivo em 2022, segundo dados da Impulso Gov.

Boa Vista, em Roraima, foi um deles. Nos dois primeiros anos da pandemia, a cidade também teve a maior taxa de letalidade de gestantes e puérperas hospitalizadas por Covid (47,7%) entre as capitais brasileiras, segundo análise do OOBr (Observatório Obstétrico Brasileiro). Palmas, no Tocantins, aparece em segundo lugar, com 31%, e Rio Branco, no Acre, tem 29,4%. A média do país como um todo foi de 9,4%.

“Essas gestantes passavam pelo pronto-atendimento e vinham direto para a UTI em estado muito crítico. Estávamos preparados? Não, não estávamos. A maternidade não tem UTI e houve momentos [no HGR, Hospital Geral de Roraima] de olharmos para os pacientes, ver a superlotação e dizer: ‘onde colocar o próximo’?, lembra Helinana Barros Machado Machado, enfermeira intensivista do HGR.

Segundo Gabrielle Almeida Rodrigues, responsável técnica de Boa Vista da área de saúde da mulher, a alta mortalidade em 2021 esteve relacionada à Covid: dos 28 óbitos registrados na capital, 21 foram por complicações da infecção.

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Fonte: Folha de SP (14/03/2023)